Relatos de uma mãe de duas na quarentena
Por Tatiana Reis, fotógrafa, artista e mãe da Helena e da Teresa, de Brasília (DF)
29 de junho de 2020
É verdade que agora, assistir ao por do sol da janela é a hora mais bonita do dia. Helena faz festa pela casa. É verdade também que parece ser um bom tempo de semeadura. Hora de olhar atenta ao que queremos ver brotar. Apesar de que zelar a raiz também é essencial. Por isso comecei a cuidar dos meus pés como se fossem duas preciosidades (quando me restam alguns minutos de calma). Penso nesse enraizar físico, sinto falta de tocar a terra. Morar nas alturas tem dessas desvantagens.

Teresa fez dois meses no dia 13, nasceu dentro de uma espécie de puerpério coletivo, um looping infinito de domingos. Parece loucura não ter plano B, rota de fuga, folga. Me pego pensando, como será que vamos lembrar de tudo isso? Ou melhor, como queremos guardar memórias desse agora? Nesse cenário distópico, escrevo cartas miudinhas para minhas duas filhas. Poderiam ser haikais, recado de mãe, pensamentos rápidos. Registros de como é importante regar as saudades, acolher os temores, praticar a meninice e sobretudo, não estancar o choro. Do generoso exercício de respirar fundo contando um, dois, três e apreciar com calma o que temos para hoje, obrigada, entendendo que somos privilegiadas.
Talvez escrever esteja me salvando de processos mais doloridos. Sinto, e você também deve sentir, saudade de gente, de beijo, de abraço. Teresa foi recebida por um mundo mascarado, temeroso, em luto e sem muitos abraços. Não teve a recepção que eu sonhei. Não é fácil nascer assim, não tem sido fácil viver o puerpério assim. Mas como disse ali, respiro fundo e escrevo bonitezas para ela, pode ser muito útil lá na frente, perceber que sobrevivemos com um pouco de poesia. São táticas cotidianas, aplicadas sem a pressão da perfeição. Pode ser que um dia seja mais difícil que o outro. De qualquer jeito, o sol se põe, não é verdade? Bonito sol no céu do inverno, e amanhã a gente recomeça.
6 de julho de 2020
Se pudesse dizer algo para a Tatiana de três anos atrás, recém-parida, seria: APAREÇA! Deixe que a sua filha saiba um dia como você estava ali. Que ela possa ver você descabelada, com olheiras profundas, de pijama. Que fique registrada a forma como brincava de manhã ainda com a cara amassada entre as cobertas ou de como franzia a testa e mordia os lábios ao amamentar e sentir dor. Se puder, fotografe também as lágrimas em seu rosto, são tão importantes. Aquelas de amor profundo que teimam em transbordar quando vocês dançam juntas ou de solidão dolorida quando finda a tarde e os pássaros fazem festa na gameleira em frente à janela. Faça mesmo um verdadeiro ensaio do seu puerpério, use o timer do celular, a mão, uma gambiarra como suporte. Peça para que te fotografem sempre, sorria se assim desejar. Pose, mas também esqueça a cena e seja você.

Uma das minha ausências mais sentidas de vida é a de retratos de minha mãe, assim, como ela era. Não só em dia de festa, mas de como ela punha a mão na cintura enquanto lambia uma colher de doce de leite, de como aguava as samambaias no quintal ou de como ela me fazia dormir em seu colo. Agora no meu segundo puerpério, apareço mesmo. Quero que esse registro fique. De um tempo incomum, de uma mulher mudada, do começo.
Quero fazer um álbum de retratos meus, carregando as crianças nas ancas, cantando pela casa, cozinhando o almoço. Quero me fotografar, entrelaçando os dedos com as paixões que se renovam como quando pinto um pouco na sala, de coque, com desejos bonitos nos olhos.
Estou aqui, repito pra mim: e quero permanecer nessas memórias visuais. Das narrativas que são os nossos dias no meio dessa pandemia, quero me ver. Quero celebrar a minha presença, a minha existência, bem assim como ela está sendo, profunda, importante. Um pouco ao sabor do vento e muito carregada de amor.
15 de julho de 2020

No começo da quarentena, nem sonhava que seriam mais de quatro meses de isolamento. Nesse tempo, me despedi da gravidez e recebi minha caçula nos braços. Ninguém nos visitou, ela ainda não conhece os tios, nem os avós. Não sentiu o vento frio esfriar a pontinha do nariz, nem o cheiro de pão quente da padaria.
Hoje Teresa completa três meses de vida, um marco importante, findando a exterogestação, está mais atenta ao mundo em sua volta. Em dias comuns, essa seria a época de escolher vestidos bonitos e assar bolos. Apresentá-la aos amigos, à família, aos passeios no parque.

Não vai acontecer agora e nem consigo imaginar quando. Isso é dolorido. A chegada da Teresa, assim como a de qualquer criança, merece uma festa. Confesso estar cansada de festa íntima ou dependente das telas, mas também sei que não temos opção. Estamos em segurança, no privilégio de poder nos isolar, com sustento e saúde. Só que a nossa natureza é coletiva, a gente deseja ter companhia. Então, andei colecionando esses desejos-pra-depois, que estão guardados com carinho.
Hoje entendi, na montanha russa que é o puerpério + pandemia, que aceitar o presente assim como está sendo, é o melhor que tenho a fazer. Parar um pouco de só mirar lá na frente, para-quando-tudo-isso-passar e diminuir a ansiedade por dias normais. Estar presente, ou tentar pelo menos, no sentido de presenciar e apreciar.
Pois então pus o vestido de sair nas meninas, vesti um também, assei um bolo com calda e vibrei. Lavei panelas, cozinhei, tomei banho com a caçula, acolhi a mais velha que caiu na sala, amamentei, tomei café debruçada na janela, escrevi uma carta, estendi as roupas, presenciei o que pude hoje, tateando os raios de sol refletidos nas paredes.
Dia desses li um verso bonito do Manoel de Barros que me tocou. “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê”. Pego emprestado o verbo inventado pra complementar: hoje aprendi a transver o presente, sabe, e foi tão bom!
28 de julho de 2020
Nunca vou me esquecer da primeira vez que saí de casa depois do nascimento da minha filha mais velha. Questão de minutos, um lugar banal, mas a sensação de ir ao supermercado sozinha, andando pelo corredor de macarrão com os braços livres (leia-se ‘sem bebê’) foi libertadora. Pode parecer coisa pouca, mas era o primeiro resgate do que eu vivia antes da revolução da maternidade em minha vida.

Agora, queria muito te contar como foi delicioso ir à padaria depois da caçula nascer. O cheiro do pão fresco, o barulho das xícaras fumegantes no balcão, bolos com merengue, doces brilhantes e o principal: pes-so-as! Pessoas sorridentes, pessoas sonolentas, criança pedindo bala na boca do caixa, a atendente um pouco mal humorada. Toda uma geografia humana e diversa reunida em uma padaria numa manhã qualquer. Desejei muito esse pseudo passeio, funcional. Imaginei o roteiro, como quem decora cena de cinema, sem erro de continuidade e depois de 150 dias de isolamento, fui. E foi um pesadelo. Parecia que a recém-nascida era eu e me senti assim para o ‘novo normal’, onde tudo parece estar contaminado, máscaras multicoloridas cobrindo sorrisos, álcool em gel aos litros. Fui atravessada pelo absurdo que me raleou a lembrança, esqueci metade das coisas, me enrolei com a máscara que escapulia do lugar, fiquei constrangida e com muito medo. Quem não está com medo?
Voltei pra casa decidida a ser concha. Brinco que o puerpério é feito ser concha. Mergulhada no árduo trabalho, íntimo, dolorido e singular que é a construção do laço materno, aqui estou. Logo essa concha terá que abrir e desta vez, vai ser diferente. Não consigo imaginar, mas ir à padaria me fez entender que preciso de máscaras mais firmes, que adaptação é sobrevivência e sobreviver é inegociável – e que vale a pena congelar pães. Já experimentou?
8 de agosto de 2020
Quando recordo os primeiros dias de vida da minha filha, na cena que me vem à cabeça, estou eu de corpo encurvado, mordendo os lábios quando a bebê abocanhava meu peito. Um espanto enorme para mim, diga-se de passagem, que por ser mãe pela segunda vez, pensei, de mãos dadas à ingenuidade, que seria fácil. Não era possível ser tão diferente assim, pensei, mas desejei fugir, sangrei, a apojadura veio com febre e ingurgitamento, beirei desistir. O que me amparou foi a certeza de que passaria e de que valeria a pena insistir. De la pra cá, muita coisa mudou. Não sinto dor, consigo estar presente. Às vezes, parece que foi pesadelo distante.
Também aprendi a lidar com outra novidade. Uma angústia intensa me visita quando sinto o peito encher. Passa num instante, mas me acompanha todos os dias. Cheguei a pensar que poderia ser depressão, mas descobri a D-MER (Dysphoric Milk Ejection Reflex), uma dança descompassada de hormônios me faz sentir à flor da pele. Já senti culpa, já tive medo, mas depois que dei nome a tudo isso, virei a chave. Procurei ajuda (acho que esse é o principal movimento a ser feito), me debrucei ao sol, estudei pela madrugada, me entreguei a pequenos prazeres que agora ganham valor imenso, como dançar ou pintar em aquarela. Me conectei com meu corpo, que nem é o mesmo de novo. Me conectei com o outro corpo que depende de mim agora, tão frágil e entregue. Me encontrei com Teresa em nossa troca de olhar, um momento único. Nós estamos nos conhecendo.
Ainda sinto um pouco de angústia (a dopamina insiste na queda livre), tive um começo de mastite e passei o dia febril, tive vontade de ser abraçada longamente.
Compreendo a amamentação como uma jornada, uma entrega que precisa de insistência e sobretudo, apoio. Foi ancorada no apoio e na informação que consegui escolher continuar. Ainda não é fácil, é verdade, mas vou segurando as mãozinhas da pequena que agora já fazem carinho nas minhas costas, uma das melhores sensações da minha vida.